«O Peixe de Herberto»©FMG

sábado, 30 de abril de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#17


O parque estava roxo como as árvores que o compõem. Esperava que ali estivessem amantes a amar-se ou a conhecer-se, nem que fosse só um pouco melhor. Mas não.
Não vi amantes.
Reparei num rapaz, talvez tivesse os olhos castanhos, não sei, houve qualquer coisa que lhe notei nos olhos mas não era a cor, não... qualquer coisa... Tentava fotografar o lago, mas a inocência impedia-o. Quando alguém o observava, mesmo que de través, ele parava e escondia-se num colete castanho.
Caía uma chuva doce. Quis deitar-me junto aos peixes.
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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Cartaz

L. K. Ludwig


#16

Não tenho medo. Não tenho. Não tenho medo. Não tenho. Sei que as sombras são os nossos medos e que os nossos medos são as nossas sombras.  São só sombras. Não há razão para ter medo. Não há. E eu não tenho medo, não tenho. Tenho sombras. Muitas sombras e as sombras são medos mas os medos são só sombras, são só sombras, não há razão para ter medo, não há.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

Cartaz

Manuel San Payo


#15

É preciso nutrir a pele e sentir a água a inocentar-me de todos estes anos.
– Que bom as vozes da telefonia (o velho rádio mal sintonizado do vizinho a entrar pela janela).  Quero pensar nas coisas que verdadeiramente importam ao mundo: as novidades, as opiniões... – 
Volto atrás se souber que morreu um poeta!
... a água ora está fria demais ou quente demais. A morte também é assim, umas vezes fria demais outras quente demais...
Um último noticiário e... Não, não morreu um poeta (ou talvez tenha morrido, a esta hora da manhã os «estimados ouvintes» querem lá saber dos poetas).
Já tenho água pelos tornozelos, já ouvi as notícias sobre os mercados, as troikas, as conversações, é hora!
Fecho as torneiras. Nem quente nem frio. O meu último pensar foi para o rádio do vizinho. Tantos anos e nunca o soube sintonizar...
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segunda-feira, 25 de abril de 2011

Cartaz


#14


«Querida, se eu não voltar...». Ela manteve a força e a confiança e «Vai correr tudo bem». Ao espelho aprumou a farda. Não olhou para trás, saiu.
Ao entrar para o carro, levou por instinto a mão ao coldre... vazio! Escada a cima , outra vez, correndo: «Só em Portugal é que alguém parte para uma revolução e se esquece da arma».
Entrada de rompante na casa....
procurar a arma e
.... na sala,
certa de que ele já não voltava... o pior:
Ela chorava. Sem ruído.
«Querida, não posso voltar atrás, mas se me acontecer alguma coisa...».
«Vai, amor. Vai correr tudo bem!».
Correu. Mas depois daquela madrugada, o Major Otelo Saraiva de Carvalho podia não ter voltado.
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(Durante as 24 horas que devolveram a vida a Portugal, ele, nunca utilizou a arma)*

domingo, 24 de abril de 2011

Cartaz


#13

24 de Abril de 2011


Será nesta madrugada, Sophia, que entre a revisão de livros e poemas soltos, escreverás os versos que que deram a Abril um rosto:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
  
Sabemos-te morta, Sophia. Mas nítida, alva e precisa, como as Deusas de um futuro mais querido. Sabemos-te atenta, sem sepultura.
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sábado, 23 de abril de 2011

Cartaz

Por G. Castro Felga
#12

Para Padre Francisco Fanhais

Na cama, um menino lia folhas de filosofia e dedilhava cordões de uma guitarra idosa.
Não sabemos. Foi há muitos. Muitos anos. Não sabemos se era alegre e brincava com os outros ou se era triste e brincava com os outros. Certo é que brincava com os outros.
Sonhava ser filósofo e escritor de poemas a que pudesse chamar canção.
Diz o Chico, que ele escreveu as primeiras tretas* num caderninho à luz de uma lanterna que chamava Revolução.
Tudo o que este menino sonhava ficava escondido sob os cobertores da cama, protegidos da escuridão.
Quando Abril aqui chegou, não sabiamos se ele era triste ou alegre. Já era homem e saía a rua para brincar com os outros. Da filosofia fez letras e mais letras, acordes e mais acordes, todos em clave de Sol e nos caderninhos, sempre à luz da lanterna Revolução, ele assinava, muito depressa,: Zeca, pastor de inquietação.
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*José Afonso, costumava chamar «tretas» às canções que compunha.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Cartaz


#11

Folheio a Bíblia e numa página ao acaso dou com uns versos de amor que um rei dedicou a uma rainha que só viu uma vez.
Consta que ela era linda, mesmo perfeita e odorífera. Mas quem lê aqueles ditados, percebe que a lindeza que aquela rainha pudesse ter lhe era indiferente, secundária ou mesmo  invisível.
Na única vez que se encontraram, aquela mulher tinha viajado, propositadamente, da Etiópia até à Palestina, para num afronto guerreiro dar ao rei a Chave da santa arca onde o segredo da origem do mundo se escondia. Chave até então perdida num ardiloso enigma que nem ele, o poderoso, tinha conseguido decifrar.
E ele amou-a desde aí. Amou-a porque ela era o que lhe faltava. Naqueles versos, é a esse encontro de Luminárias que ele se refere.
Numa única tarde, na Palestina, o verdadeiro Sol e a verdadeira Lua tinham-se consumado.
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quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cartaz

Vaslav Nijinsky


#10

Quando nasceu a primeira criança humana do mundo certamente já tinha nascido outra para poder dar à luz a primeira criança humana que nasceu. Ou então, quem deu à luz a primeira criança humana do mundo não era humano. E nesta alternativa consiste um pavio de esperança: Se os humanos não forem descendentes de humanos a humanidade foi arquitectada, logo, pode reinventar-se: Ora se a humanidade puder ser reinventada, é possível acontecer pela segunda vez no mundo o nascimento da primeira criança humana no mundo e tudo será começo e eleição.
Mas o verdadeiro propósito deste espanto é residir na coroa desse arquitecto da humanidade a clareza de ao nascer pela segunda vez a primeira criança humana do mundo não lhe chamar humana.
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quarta-feira, 20 de abril de 2011

Cartaz


#9

Tenho golpes de punhal nas costas. Até fazem o desenho de um coração. E é esta a razão de passar mal as noites.
Pode não parecer, mas custa arranjar posição para dormir não nos podermos acamar de espaldas.
Quando tinha as costas livres, gostava de me alongar, fumando ou lendo com uma luz mínima no quarto.
Olhar o tecto e contar moscas é das mais relaxantes posturas para encarar a razão profunda da existência e os fundamentos divinos.
Hoje vejo-me obrigado a um adormecimento forçado em posição fetal, apartado das antigas conjecturas filosóficas que o estiramento na cama me concedia.
Ter sido apunhalado nas espáduas é uma patologia do sono em que inexplicavelmente ninguém pensa.
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terça-feira, 19 de abril de 2011

Cartaz



#8

Para Eduarda Dionísio, Vítor Silva Tavares, Jorge Silva Melo

Nesta noite de Abril, trovejou como numa manhã de Maio.
Os relâmpagos são celebrações tão principais que os nossos-ossos magoam, os músculos rangem, e os céus cobrem indignados o desassossego que temos nos ramos do corpo.
Agora está Sol, nauseante odor aos soldados negros desse Novembro.
Abril sufocou quando num distante mês de Novembro os fuzis se voltaram contra nós.  Como a Toupeira furámos,  furámos e respirámos no seguinte Maio.
Troveja Abril em Maio, troveja.
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segunda-feira, 18 de abril de 2011

Cartaz


#7

Um rato é desaprazível por ser rato, mas o rato não sabe que é rato nem que ser rato é ser desaprazível. É-lhe por isso incrível a repugnância e a agressividade com que o atacam. O rato sabe que o atacam, o rato sente a repugnância que têm por ele, mas olhando em volta o rato sente-se igual a um pardal ou a um melro.
Talvez por essa a razão o rato quando ainda vivo mas atrapado a uma ratoeira, olha em volta e cônscio de que a mais nenhum animal espera uma morte assim, só tem um pensamento de dúvida possível: «Será porque não tenho asas?».
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domingo, 17 de abril de 2011

Cartaz


#6

Há cores e sonâncias e palavras e semblantes e toques –, há um dilúvio de sucedimentos que só existem aos nossos sentidos porque é Domingo.
Domingo é a manifestação objectiva de que toda a tristeza do mundo pode caber num único ser.
Todos os calendários que a Humanidade concebeu têm um Domingo (certamente com outros nomes), era preciso reservar um dia do tempo contado, para demonstrar que a infelicidade imortal existe e que para isso basta estar só.
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Cartaz


#5

Alcácer-Kibir não é um deserto. É um mapa de terra escura, quase barro, terracota arredondada.
Entre ladeiras gigantes e outeiros, arredondam-se espelhos de água que as chuvas formam. Quem passa por Alcácer-Kibir, não consegue idear ali um tão brutal teatro de guerra .
Esse, o de 4 de Agosto de 1578.
Sabemos que as oliveiras e as azinheiras que lá moram foram testemunhas da galopada definitiva dos Reis-Magos que ali rugiram até à morte, mas estão silenciosas. Mudas da sua história.
Quase quatrocentos e cinquenta anos passados sobre o Apocalipse dos Reis, Alcácer-Kibir é um mapa de terra quente, quase barro, quase, quase, nada.
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Cartaz


#4

Alarmado mas lúcido, acordo a meio do sono gritando e gesticulando com a raiva de quem luta com todas as forças  contra a ruína do seu próprio ser.
Creio que não tenho sonhos. Creio que tenho um sonho.
Uma só narrativa que me ocupa o corpo e a capacidade de ponderar.
Sei o que causo, memoro o que realizo, tenho na língua os nomes de todos os que amo. Porém, quando a ficção onírica se exalta à máxima habilidade de me desfigurar, despojado de todos os amparos, só me resta acordar.
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quinta-feira, 14 de abril de 2011

Cartaz


#3

A terra e tudo o que nela existe cabe na caixa de rapé do Sol.
Alexandria, Jerusalém, Pérsia... tudo num pequeno estojo portátil.
O Evereste é imenso. Ambiciona tocar o céu dos perfeitos. Mas que importa ao Sol a altura do Evereste?
No entanto, o bater síncrono de muitos corações na Terra, produz um eco tal que esta manhã, espantado com o estrondo, o Astro se adiantou uma hora na pressa de nascer.
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terça-feira, 12 de abril de 2011

Cartaz


#2

Lembro-me tão bem do teu sorriso quando lias.
Por minha falta de coragem para perguntar, imaginava que cada passagem do teu livro correspondia às renovações gráceis dos teus lábios. Assim ficava, horas, arquitetando as narrativas que os teus olhos compreendiam e que sem saber, através de incontáveis variantes de sorriso, me revelavas no silêncio gritante e inquieto de quem lê.
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Cartaz

#1

Quando de noite, se deseja dormir depressa, ignorando a celebração meiga e integralmente macia do obséquio às velas e do aceno aos anjos que prenunciamos em nossa guarda, consentimos às regalias de compaixão que a tristura confere e tudo o que não foi noite por ter sido dia se perde.  
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