«O Peixe de Herberto»©FMG

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte III - «Staccato»: #51

©Frederico Mira George @stacatu
III Parte - «Staccato»
Buprenorfina 8mg


#51

Ali estava, mais uma manhã. Desunido de todas partituras humanas e geográficas. «Staccato»: pensou. Como na música, quando uma nota, um acorde, um silêncio, se destaca de todo um conjunto de sons organizados.
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quarta-feira, 29 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #50 - Fim da II Parte

© Frederico Mira George - @stacatu

#50

«Morte aos comunas!». Disseram os sub-porcos.
E nessa noite, José Conceição Carvalho, militante socialista-revolucionário, operário, filósofo, antimilitarista, nosso mestre dos dias, feiticeiro das causas de combate, caiu vítima de 15 cm de uma lâmina Nazi.
Em 1989, provava-se ao mundo português que o nazismo continuava vivo. Que usava os mesmos métodos e que as vitimas destes seres que a natureza não inclui, estes não-seres feitos de nojo e defunção, eram os de sempre.
José Conceição Carvalho, fazedor de máquinas de escrever e sapatos de couro, escritor de música e agitador de químicas entre-humanas, morreu porque ousava existir pacificamente. Mas a «Morte as Comunas» que os sub-porcos anunciaram não se cumpriu. Nem se cumprirá nunca. Até do sangue em que o Zé rebentou se fez uma tinta nova para que bandeiras vermelhas se multiplicassem.
De nós, cada um são cem.
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sábado, 18 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #49

©Frederico Mira George

#49

Vagarosamente recomeçou a escrever. Versos muito longos e narrativos. Voltava a ser possível contar histórias através da poesia. A alegria dos anos antecessores quase a tinham calado, o ruído da felicidade inibe a fala dos poemas.
Como sempre fizera, escrevia de manhã ainda de roupão, aproveitando o silêncio violento da luz de Julho. Se fosse dia de chuva, sentava-se perto da janela. Olhava para rua e vendo o carreiro de gente humana passar, ia registando palavras desamparadas num pequeno bloco para depois as unir num fio que só ela sabia seguir no entrançado mecânico da máquina de escrever.
Tinha chegado o fim da felicidade. Os poemas ressurgiam numa franca abóbada de ressentimentos e fúrias caladas.
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quarta-feira, 15 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #48

 © Frederico Mira George

#48
Morreu e ninguém sabia explicar como ou porquê. Tinha sido tão fulgurante a sua aparição como o seu extravio.
Era barbeiro e não tinha nada a perder (só o que não arriscasse). Adorador do fado erudito e insurreto que Amália tinha inventado, historiador atento do que se passara nas vanguardas punk dos anos 70, criou para si um estilo e uma configuração musical tão inesperada que de choque ninguém ousou contestar.
Da sua requintada barbearia no Príncipe Real às noites da Lisboa mais escura e oculta, António confeccionou variações de si mesmo: Figurinos teatrais para as suas expressões de combate. Poemas e melodias nos extremos. Do ridículo e da erudição. Variações inquietas das personagens que ele era.
Morreu e nada se sabia sobre o que o matara. Respirava-se a notícia: uma doença sem explicação tinha baixado à terra para ceifar os imortais.
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segunda-feira, 13 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #47

© Frederico Mira George, @ff


#47

Afonso tinha reunido em casa equipamento de emissão TSF* que permitia a qualquer um, da forma mais simples e caseira, fundar uma estação de rádio e emitir livremente. Não existia nenhuma lei que punisse a emissão em FM*. Ao mesmo tempo, não era permitido legalizar emissores privadas de radiodifusão. Este «cinzento» legal, fez com que dezenas de radioamadores se organizassem e em pequenos grupos (geralmente cooperativas) lançassem no éter propostas de conteúdo que seriam impensáveis nas estações legalizadas. «Legalizadas» significava estatizadas. Em 75, na massa de nacionalizações dos órgãos de comunicação social, só alguns jornais tinham subsistido na esfera privada.
Nos anos 80, descobria-se que o espaço invisível das ondas hertzianas estava vago e disponível. Não duraria muito este «furo» de liberdade de comunicação. No início dos anos 90 acabaria por ser aprovada uma lei com a intenção de «pôr na linha» os radiodifusores independentes.
Com o equipamento de Afonso forjámos a nossa estação. Emitimos pela primeira vez num bissexto 29 de Fevereiro, a partir de uma garagem no Rato. Éramos orgulhosamente piratas. Ali mostrámos a música que queríamos. Ali falámos da arte que nos interessava. Enfim, ali sonhámos chegar aos ouvidos das pessoas que pareciam ter hibernado da vida após a derrota de Novembro.
©@ff

* A radiotelefonia ou telefonia sem fios (TSF) é um sistema de comunicação telefónica sem fio que utiliza ondas radioelétricas (para a rádiotransmissão e radiorecepção de voz ou dados.
* FM é a abreviatura para modulação em frequência ou frequência modulada. Iniciada nos Estados Unidos no início do século XX, FM é uma modalidade de radiodifusão que usa a faixa 87,5 Mhz a 108 Mhz com modulação em frequência.

domingo, 12 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #46

c Frederico Mira George, @ff

#46

A carta era antiga. Margarida e Samuel tinham andado juntos no liceu. De todo o grupo, eram os que se conheciam há mais tempo. Estavam no 6º ano* quando o 25 de Abril rompeu. Ora, 6º ano... 16 anos?
Samuel era um homem sem sorriso (já era nessa altura do liceu). Nele se transportava um fio de redução e tristeza que nunca ninguém cuidou ou não quis cuidar. Escrevia cartas. Na realidade escrevia cartas mas a maioria eram para Margarida. Era ela a razão dele escrever. Por vezes redigia em duplicado. Usava papel químico. Um exemplar ficava com ele, o outro enviava a Margarida. Apesar do texto ser o mesmo, o entendimento era desigual aos olhos de um e aos olhos do outro. O que Sam escrevia não era o que Gui lia.
§
A carta, das primeiras, Gui encontrou-a a arrumar gavetas. Não tinha memória de a ter lido. Mas o envelope rasgado e as páginas moídas da leitura bem o provavam.
Tarde demais, Margarida ao reler a antiga carta percebeu. 
©@ff

*Actual 10º ano de escolaridade

quarta-feira, 8 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #45

© Frederico Mira George, @ff

#45

Tinha passado a manhã a tentar escrever e não tinha conseguido redigir uma frase. O romance estava escrito e desenhado na cabeça, se por um lado isso lhe conferia o desejo imenso de o expor e tornar objeto concreto, por outro, desmotivava-o ter de passar para o papel aquilo que na cabeça era sempre mais perfeito e exacto.
Simão Jó, escrevia de manhã. Só de manhã e muito cedo. Aproveitava aquelas horas matinais em que a consciência mal separa a realidade do que são restos do sono e da abstracção própria dos sonhos. 
Ter acordado com um telefonema de Sven obrigou-o a reagir, responder, decidir, enfim... a despertar, matando-lhe toda a disponibilidade para trabalhar.
Quase ninguém entendia a necessidade de Simão consagrar as manhãs à escrita (e escrever era recompor-se). Na generalidade, quando Simão Jó revelava aos outros esta sua particularidade, supunham tratar-se de um capricho pretensioso. Contudo, a urgência que Simão tinha de escrever era sinonima de perdurar. Ter as manhãs assim devotadas era caucionar a si próprio que cada dia tinha um rosto diferente.
Sven tinha-lhe sequestrado a manhã com aquele telefonema. Sem o saber e por um assunto sem importância, Sven tira atirado Simão Jó para um dia de agonia.
A meio da tarde, sentindo-se impotente de tudo, Simão deitou-se na condição que mais temia: o torpor oco e infértil dos dias sempre iguais de uma década em que Portugal voltara à horizontalidade abafada de nada acontecer.
© @ff

sábado, 4 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #44

© Frederico Mira George, @ff

#44

A partir da meia noite do dia 1 de Janeiro de 1980, passou a chamar-se «Afonso». Só «Afonso», que não voltou a revelar apelidos.
A noticia espalhou-se, Afonso «punha música» [na altura era a expressão usada, só no final dos 80 aparecia a expressão «DJ] numa das épicas discotecas do Cais do Sodré. Em 83, aqueles que o conheciam pela primeira vez perguntavam: «Afonso quê?», ao que  invariavelmente ele respondia: «Afonso Só». Assim ficou. Até ele passou a assinar assim.
Isto vem a propósito porque explica o fenómeno generalizado de alterações de nomes nos artistas daquela época em Portugal. Dos actores, aos pintores, havia sempre um «Qualquer-coisa Só».
De igual maneira foi o tempo de escritores  publicarem sob extensas carreiras de nomes e apelidos com intenção métrica e nunca como testemunho genealógico. Ou, pelo contrário, usavam transcrições fonéticas de uma só letra, como se o som de uma letra contivesse todo o conteúdo do autor. Destas variantes todas vem-me à memória: Paula Só, Al Berto, João Miguel Fernandes Jorge, Mimi, Ana Jota, PêPê... a lista seria infinda. Só nos anos 90 se regressou a assinaturas simples (outras particularidades viriam em 90, como a introdução  de iniciais entre os apelidos).
A forma como os artistas convocam as suas energias e expulsam as suas propostas está sempre espelhada na maneira como assinam e se dão a conhecer. Nos anos 80 declarava-se o estado de coma das assinaturas de «marca». De alguma forma foi mesmo a morte dos nomes com pedigree. Exultava-se a criação plástica de tudo, até dos nossos próprios nomes.
©@ff

quinta-feira, 2 de junho de 2011

cartazes - Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»:#43

© Frederico Mira George, @off




#43

Foi durante um jantar de aniversário que conhecemos pessoalmente o alemão Sven.
Nascido em Berlim-Leste, fotógrafo, tinha vindo a Portugal em reportagem durante o «verão quente» de 75 e por cá ficara absorvido pelo deslumbramento daquele tempo insurrecto.
Como tinha sido recebido (aquando da sua chegada a Lisboa) pelas contexturas do PCP*, corria entre nós, militantes anti-estalinistas, o rumor de que Sven era informador da Stasi**. Em consequência desse rumor, juntado o «S» de Sven, com o «S» de Stasi, quando alguém o queria nomear usava com frequência a alcunha: «o SS».
Todos estas ingredientes aguçavam a vontade de o conhecer e foi o que aconteceu no dia de aniversario da Margarida. Jornalista no «Diário de Lisboa», tinha-se cruzado com Sven na redação do jornal, acabando por não resistir a se aproximar dele e em pouco tempo eram amigos chegados.
Informador da Stasi ou não, o alemão Sven trouxe-nos a faculdade do espanto. A partir daquela noite, deixou de ser «o amigo alemão» da Margarida para ser um de nós.
(...)
© @off

*
PCP: Partido Comunista Português. O mais antigo partido político em actividade ininterrupta desde a sua fundação no início do século XX de matriz Estalinista. Durante a ditadura fascista portuguesa foi o polo central de mobilização contra o regime.

**
Stasi: Polícia Política e Agência de Serviços Secretos do regime pró-soviético da República Democrática Alemã.
Criada por decreto no dia 8 de Fevereiro de 1950 era treinada e controlada pelo soviético KGB. Foi responsável por milhares de perseguições, prisões, torturas e assassinatos. Já depois da sua extinção oficial com a reunificação germânica, a Amnistia Internacional denunciou a continuação da sua actividade, agora de forma clandestina, como agrupamento de mercenários e rede de espionagem a soldo.
Enquanto existiu como estrutura legal da RDA eram conhecidas as suas ligações ao PCP.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #42

© Frederico Mira George

#42

Combinámos às quatro em Campo de Ourique, no Ruacaná. Em 83 o café ainda conservava um olor a revoltas e conspirações extremistas. Ali se reuniram os anarco-sindicalistas durante a insurreição republicana de 10, ali se reuniu a extrema-esquerda (trotskistas na maioria) entre 74 e 78. Não podíamos ter escolhido lugar mais inspirador para a sublevação possível daquele dia: comprar telas.
A revolução (entenda-se que sempre que usar a palavra «revolução» sem acrescento me refiro a 25 de Abril de 1974), tinha trazido a pintura para a rua. A arte na generalidade. Naquele ano principiava o regresso do talento às prisões  e à disciplina autoritária do mercado. Os muros pintados de alegria revolucionária  começavam a ser «varridos» sem contemplação, enfim, dava-se início à limpeza da memória artística-popular de Abril.
Tínhamos de regressar à pintura caseira, voltar para dentro dos limites da tela, das molduras. Cada um faria o seu «quadro».
Eles tinham conseguido separar-nos, e agora? Onde se compram telas?
(...)
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