«O Peixe de Herberto»©FMG

terça-feira, 12 de julho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte III - «Staccato»: #54

© Frederico Mira George @stacatu

#54

Na morte de Jorge lima Barreto

Na linha etérea onde se propagam as sonâncias, navega agora Jorge Lima Barreto. Mestre do vocábulo primordial, da primeira voz, do primeiro sopro.
Não foi o nome de Deus que se perdeu. A «palavra perdida» não é uma palavra. Nunca, nada, se perdeu. No princípio era o verbo e o verbo era som e antes do som era silêncio e o silêncio também é som.
Num universo de causas e efeitos, um homem, deu início à sua peregrinação: avançar no tempo para tocar o extremo-passado e no extremo-passado encontrar a expressão sonora inaugural do mundo.
Na morte, certamente que Jorge Lima Barreto ouviu o som que fabricou o cosmo.
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quinta-feira, 7 de julho de 2011

C©artazes, Diário Literário - Parte III - «Staccato»: #53

© Frederico Mira George - @stacatu

#53

O cheiro dos lençóis, a humidade da almofada... nessa noite até a ventoinha causava náuseas. Antes de cair no cansaço, pensei que se mudasse a fronha do travesseiro talvez conseguisse ter noites melhores. Ao menos uma almofada com toque a lavado e algum frescor. Adormeci com esse desígnio e isso ajudou-me. Não dormi melhor, não tive sonhos mais serenos. Mas ao despertar tinha pelo menos uma coisa útil para conquistar.
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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte III - «Staccato»: #51

©Frederico Mira George @stacatu
III Parte - «Staccato»
Buprenorfina 8mg


#51

Ali estava, mais uma manhã. Desunido de todas partituras humanas e geográficas. «Staccato»: pensou. Como na música, quando uma nota, um acorde, um silêncio, se destaca de todo um conjunto de sons organizados.
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quarta-feira, 29 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #50 - Fim da II Parte

© Frederico Mira George - @stacatu

#50

«Morte aos comunas!». Disseram os sub-porcos.
E nessa noite, José Conceição Carvalho, militante socialista-revolucionário, operário, filósofo, antimilitarista, nosso mestre dos dias, feiticeiro das causas de combate, caiu vítima de 15 cm de uma lâmina Nazi.
Em 1989, provava-se ao mundo português que o nazismo continuava vivo. Que usava os mesmos métodos e que as vitimas destes seres que a natureza não inclui, estes não-seres feitos de nojo e defunção, eram os de sempre.
José Conceição Carvalho, fazedor de máquinas de escrever e sapatos de couro, escritor de música e agitador de químicas entre-humanas, morreu porque ousava existir pacificamente. Mas a «Morte as Comunas» que os sub-porcos anunciaram não se cumpriu. Nem se cumprirá nunca. Até do sangue em que o Zé rebentou se fez uma tinta nova para que bandeiras vermelhas se multiplicassem.
De nós, cada um são cem.
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sábado, 18 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #49

©Frederico Mira George

#49

Vagarosamente recomeçou a escrever. Versos muito longos e narrativos. Voltava a ser possível contar histórias através da poesia. A alegria dos anos antecessores quase a tinham calado, o ruído da felicidade inibe a fala dos poemas.
Como sempre fizera, escrevia de manhã ainda de roupão, aproveitando o silêncio violento da luz de Julho. Se fosse dia de chuva, sentava-se perto da janela. Olhava para rua e vendo o carreiro de gente humana passar, ia registando palavras desamparadas num pequeno bloco para depois as unir num fio que só ela sabia seguir no entrançado mecânico da máquina de escrever.
Tinha chegado o fim da felicidade. Os poemas ressurgiam numa franca abóbada de ressentimentos e fúrias caladas.
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quarta-feira, 15 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #48

 © Frederico Mira George

#48
Morreu e ninguém sabia explicar como ou porquê. Tinha sido tão fulgurante a sua aparição como o seu extravio.
Era barbeiro e não tinha nada a perder (só o que não arriscasse). Adorador do fado erudito e insurreto que Amália tinha inventado, historiador atento do que se passara nas vanguardas punk dos anos 70, criou para si um estilo e uma configuração musical tão inesperada que de choque ninguém ousou contestar.
Da sua requintada barbearia no Príncipe Real às noites da Lisboa mais escura e oculta, António confeccionou variações de si mesmo: Figurinos teatrais para as suas expressões de combate. Poemas e melodias nos extremos. Do ridículo e da erudição. Variações inquietas das personagens que ele era.
Morreu e nada se sabia sobre o que o matara. Respirava-se a notícia: uma doença sem explicação tinha baixado à terra para ceifar os imortais.
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segunda-feira, 13 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #47

© Frederico Mira George, @ff


#47

Afonso tinha reunido em casa equipamento de emissão TSF* que permitia a qualquer um, da forma mais simples e caseira, fundar uma estação de rádio e emitir livremente. Não existia nenhuma lei que punisse a emissão em FM*. Ao mesmo tempo, não era permitido legalizar emissores privadas de radiodifusão. Este «cinzento» legal, fez com que dezenas de radioamadores se organizassem e em pequenos grupos (geralmente cooperativas) lançassem no éter propostas de conteúdo que seriam impensáveis nas estações legalizadas. «Legalizadas» significava estatizadas. Em 75, na massa de nacionalizações dos órgãos de comunicação social, só alguns jornais tinham subsistido na esfera privada.
Nos anos 80, descobria-se que o espaço invisível das ondas hertzianas estava vago e disponível. Não duraria muito este «furo» de liberdade de comunicação. No início dos anos 90 acabaria por ser aprovada uma lei com a intenção de «pôr na linha» os radiodifusores independentes.
Com o equipamento de Afonso forjámos a nossa estação. Emitimos pela primeira vez num bissexto 29 de Fevereiro, a partir de uma garagem no Rato. Éramos orgulhosamente piratas. Ali mostrámos a música que queríamos. Ali falámos da arte que nos interessava. Enfim, ali sonhámos chegar aos ouvidos das pessoas que pareciam ter hibernado da vida após a derrota de Novembro.
©@ff

* A radiotelefonia ou telefonia sem fios (TSF) é um sistema de comunicação telefónica sem fio que utiliza ondas radioelétricas (para a rádiotransmissão e radiorecepção de voz ou dados.
* FM é a abreviatura para modulação em frequência ou frequência modulada. Iniciada nos Estados Unidos no início do século XX, FM é uma modalidade de radiodifusão que usa a faixa 87,5 Mhz a 108 Mhz com modulação em frequência.

domingo, 12 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #46

c Frederico Mira George, @ff

#46

A carta era antiga. Margarida e Samuel tinham andado juntos no liceu. De todo o grupo, eram os que se conheciam há mais tempo. Estavam no 6º ano* quando o 25 de Abril rompeu. Ora, 6º ano... 16 anos?
Samuel era um homem sem sorriso (já era nessa altura do liceu). Nele se transportava um fio de redução e tristeza que nunca ninguém cuidou ou não quis cuidar. Escrevia cartas. Na realidade escrevia cartas mas a maioria eram para Margarida. Era ela a razão dele escrever. Por vezes redigia em duplicado. Usava papel químico. Um exemplar ficava com ele, o outro enviava a Margarida. Apesar do texto ser o mesmo, o entendimento era desigual aos olhos de um e aos olhos do outro. O que Sam escrevia não era o que Gui lia.
§
A carta, das primeiras, Gui encontrou-a a arrumar gavetas. Não tinha memória de a ter lido. Mas o envelope rasgado e as páginas moídas da leitura bem o provavam.
Tarde demais, Margarida ao reler a antiga carta percebeu. 
©@ff

*Actual 10º ano de escolaridade

quarta-feira, 8 de junho de 2011

cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #45

© Frederico Mira George, @ff

#45

Tinha passado a manhã a tentar escrever e não tinha conseguido redigir uma frase. O romance estava escrito e desenhado na cabeça, se por um lado isso lhe conferia o desejo imenso de o expor e tornar objeto concreto, por outro, desmotivava-o ter de passar para o papel aquilo que na cabeça era sempre mais perfeito e exacto.
Simão Jó, escrevia de manhã. Só de manhã e muito cedo. Aproveitava aquelas horas matinais em que a consciência mal separa a realidade do que são restos do sono e da abstracção própria dos sonhos. 
Ter acordado com um telefonema de Sven obrigou-o a reagir, responder, decidir, enfim... a despertar, matando-lhe toda a disponibilidade para trabalhar.
Quase ninguém entendia a necessidade de Simão consagrar as manhãs à escrita (e escrever era recompor-se). Na generalidade, quando Simão Jó revelava aos outros esta sua particularidade, supunham tratar-se de um capricho pretensioso. Contudo, a urgência que Simão tinha de escrever era sinonima de perdurar. Ter as manhãs assim devotadas era caucionar a si próprio que cada dia tinha um rosto diferente.
Sven tinha-lhe sequestrado a manhã com aquele telefonema. Sem o saber e por um assunto sem importância, Sven tira atirado Simão Jó para um dia de agonia.
A meio da tarde, sentindo-se impotente de tudo, Simão deitou-se na condição que mais temia: o torpor oco e infértil dos dias sempre iguais de uma década em que Portugal voltara à horizontalidade abafada de nada acontecer.
© @ff

sábado, 4 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #44

© Frederico Mira George, @ff

#44

A partir da meia noite do dia 1 de Janeiro de 1980, passou a chamar-se «Afonso». Só «Afonso», que não voltou a revelar apelidos.
A noticia espalhou-se, Afonso «punha música» [na altura era a expressão usada, só no final dos 80 aparecia a expressão «DJ] numa das épicas discotecas do Cais do Sodré. Em 83, aqueles que o conheciam pela primeira vez perguntavam: «Afonso quê?», ao que  invariavelmente ele respondia: «Afonso Só». Assim ficou. Até ele passou a assinar assim.
Isto vem a propósito porque explica o fenómeno generalizado de alterações de nomes nos artistas daquela época em Portugal. Dos actores, aos pintores, havia sempre um «Qualquer-coisa Só».
De igual maneira foi o tempo de escritores  publicarem sob extensas carreiras de nomes e apelidos com intenção métrica e nunca como testemunho genealógico. Ou, pelo contrário, usavam transcrições fonéticas de uma só letra, como se o som de uma letra contivesse todo o conteúdo do autor. Destas variantes todas vem-me à memória: Paula Só, Al Berto, João Miguel Fernandes Jorge, Mimi, Ana Jota, PêPê... a lista seria infinda. Só nos anos 90 se regressou a assinaturas simples (outras particularidades viriam em 90, como a introdução  de iniciais entre os apelidos).
A forma como os artistas convocam as suas energias e expulsam as suas propostas está sempre espelhada na maneira como assinam e se dão a conhecer. Nos anos 80 declarava-se o estado de coma das assinaturas de «marca». De alguma forma foi mesmo a morte dos nomes com pedigree. Exultava-se a criação plástica de tudo, até dos nossos próprios nomes.
©@ff

quinta-feira, 2 de junho de 2011

cartazes - Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»:#43

© Frederico Mira George, @off




#43

Foi durante um jantar de aniversário que conhecemos pessoalmente o alemão Sven.
Nascido em Berlim-Leste, fotógrafo, tinha vindo a Portugal em reportagem durante o «verão quente» de 75 e por cá ficara absorvido pelo deslumbramento daquele tempo insurrecto.
Como tinha sido recebido (aquando da sua chegada a Lisboa) pelas contexturas do PCP*, corria entre nós, militantes anti-estalinistas, o rumor de que Sven era informador da Stasi**. Em consequência desse rumor, juntado o «S» de Sven, com o «S» de Stasi, quando alguém o queria nomear usava com frequência a alcunha: «o SS».
Todos estas ingredientes aguçavam a vontade de o conhecer e foi o que aconteceu no dia de aniversario da Margarida. Jornalista no «Diário de Lisboa», tinha-se cruzado com Sven na redação do jornal, acabando por não resistir a se aproximar dele e em pouco tempo eram amigos chegados.
Informador da Stasi ou não, o alemão Sven trouxe-nos a faculdade do espanto. A partir daquela noite, deixou de ser «o amigo alemão» da Margarida para ser um de nós.
(...)
© @off

*
PCP: Partido Comunista Português. O mais antigo partido político em actividade ininterrupta desde a sua fundação no início do século XX de matriz Estalinista. Durante a ditadura fascista portuguesa foi o polo central de mobilização contra o regime.

**
Stasi: Polícia Política e Agência de Serviços Secretos do regime pró-soviético da República Democrática Alemã.
Criada por decreto no dia 8 de Fevereiro de 1950 era treinada e controlada pelo soviético KGB. Foi responsável por milhares de perseguições, prisões, torturas e assassinatos. Já depois da sua extinção oficial com a reunificação germânica, a Amnistia Internacional denunciou a continuação da sua actividade, agora de forma clandestina, como agrupamento de mercenários e rede de espionagem a soldo.
Enquanto existiu como estrutura legal da RDA eram conhecidas as suas ligações ao PCP.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #42

© Frederico Mira George

#42

Combinámos às quatro em Campo de Ourique, no Ruacaná. Em 83 o café ainda conservava um olor a revoltas e conspirações extremistas. Ali se reuniram os anarco-sindicalistas durante a insurreição republicana de 10, ali se reuniu a extrema-esquerda (trotskistas na maioria) entre 74 e 78. Não podíamos ter escolhido lugar mais inspirador para a sublevação possível daquele dia: comprar telas.
A revolução (entenda-se que sempre que usar a palavra «revolução» sem acrescento me refiro a 25 de Abril de 1974), tinha trazido a pintura para a rua. A arte na generalidade. Naquele ano principiava o regresso do talento às prisões  e à disciplina autoritária do mercado. Os muros pintados de alegria revolucionária  começavam a ser «varridos» sem contemplação, enfim, dava-se início à limpeza da memória artística-popular de Abril.
Tínhamos de regressar à pintura caseira, voltar para dentro dos limites da tela, das molduras. Cada um faria o seu «quadro».
Eles tinham conseguido separar-nos, e agora? Onde se compram telas?
(...)
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segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #41

© Frederico Mira George

#41

De um dia para o outro éramos todos pintores. E escrevíamos. Pensávamos em conjunto e regressávamos à rua depois um longo deserto de travessia. A filosofia era o nosso corpo e Lisboa cenário para os olhos. Era tudo possível e espantoso em nós. Portugal voltava a ser cinzento depois do espasmo libertário de Abril e cabia-nos a nós, um de cada vez, retornar à cor da festa militante.
A partir desta linha estamos em Lisboa, nas ruas e nas casas dos anos oitenta de um século irremediavelmente passado.
(...)
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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George

#40

Não contava com a plenitude depois de tanto clamar. Pensei que não me ouvissem. Pensei que que tinha chegado o fim.
Talvez julguem que estou a dramatizar, que é uma rábula de mim mesmo. Não, não é.
As borboletas que invadiam o meu quarto à noite desapareceram há umas semanas. Hoje, desviando as voltas a tudo o que me é tormento, as borboletas-traça chegaram de manhã. Lúcidas e com voos próprios de borboleta. Visitaram e quarto e saíram. Ou se despediam, ou anunciavam algo.
©

domingo, 22 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George
®F.M.G./DC/Com
#38

No dia seguinte veio ver-me e trazia um saco com revistas alemãs. Eram preciosas.
Nos anos 80, em Lisboa, começavam a brotar pequenos movimentos de artistas: pintores, escultores, poetas, o famoso «regresso à pintura» com a exposição Homeostética na Sociedade Nacional de Belas-Artes e o nascimento de minúsculas galerias que haviam de se tornar desmedidas: «Cómicos», «Módulo», «Quadrum», «Diferença»... Geração-Perdida, como a baptizaram. E em pano de fundo profanava-se o rock cantando em português com ritmos exagerados, próprios de quem esteve demasiado tempo calado.
Saber como pintavam os alemães era água para quem está à seca. E ele sabia o tanto que eu ansiava daquela Berlim Oriental. Paris deixara de ser o centro do mundo, Nova-Iorque começava sair das Sombras e Nevoeiro*. Lisboa sentia-se perdida como é seu rosário.
Ficámos a passear entre pinturas de Baselitz, fotografias de Wenders... Não voltámos às feridas da conversa anterior. O afecto morria ali.
©

*Shadows and Fog, filme de Woody Allen

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George
(Yin-Yang, para João Carlos Silva)


#36

Em França achei que poderia invadir a inteligência de mim mesmo e abater as paredes entre o que vejo no espelho e os meândricos desenhos: a amálgama de evocações, apetências, bem-e-mal-querenças, que me povoam o cérebro.
A filosofia religiosa parecia a entrada para um cosmo enigmático e bondoso da mente, quis conhecê-lo. Estudei sob orientação de dois místicos tibetanos e de um cristão pragmático que esquecera o  teologismo habitual para empreender esforços teológicos sinceros.
França era uma espécie de olimpo para quem com a minha idade encontrava duvidas e repostas no odor das cidades de manhã, no sabor dos alimentos, nas sensações da pele.
Bastaria ter abraçado uma religião com o fulgor inicial da juventude. Sem trespassar fronteiras geográficas, sem voar com asas-de-cera tão perto do Sol.
Místicos tibetanos têm a sua graça. Cristãos pragmáticos ainda mais. Mas o caminho deles nunca se cruzou com o meu. Em França habitei o chão da esperança e nunca o da liberdade. Mestres e eu... caminhos paralelos... só por ironia... no infinito.
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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George


#35

Andava às voltas na praceta procurando alguém que o reconhecesse.
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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#34

Enquanto fumava um último cigarro – ritual diário de treino para o sono –,  Ocorreu-lhe que apesar de toda a dileção e oblações amorosas, ser-lhe interdito partilhar os «territórios» encobertos da mente de O (ou mesmo as recordações que ele sabia subliminares em alguns dos olhares dela), dava origem a um estremecer quotidiano que o fazia receoso e timorato.
Já apagado o cigarro, enquanto desfruía do silêncio que sempre precedia os estrépitos maldosos do sono, arrependeu-se destes pensamentos. Afinal, se lhe fossem abertas as portas desses «terrenos» o seu temor seria muito maior. Jamais saberia lidar com o universo reservado de O. Principalmente porque até talvez nem existisse, ou pior, existindo, fosse um espelho rigoroso do seu.
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terça-feira, 17 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#33

A janela era a moldura. Durante a trovoada o céu trouxe todo o firmamento para um só plano. As cores eram tão oleosas e espatuladas, com matéria palpável, que se diria ter estado a percorrer uma passagem de telas de coloração semelhante às da polaroide.
A trovoada de ontem, vista em estampas com o ornato da janela da estufa, conferiu-me a certeza de que tudo o que apeteço criar já existe e está no páramo do Olimpo.
No terror a que esta constatação me sujeitou, encarei a cama e fui tentado a uma promessa: «Aqui ficarei, fixo, encarnando religiosamente cada ilustração telúrica e fixando-as uma-a-uma, rubricarei nelas o nome que me deres».
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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Cartazes - Diário Literário /sobre Cartaz #32

©Frederico Mira George
© Frederico Mira George

Cartaz

©Frederico Mira George


#32

A barbearia Nogueira fica na esquina da rua onde estou hospedado. Fechou de vez esta semana. Tinha aberto ao público há sessenta e um anos.
Em criança ia lá cortar o cabelo pela mão de uma criada que tinha o serviço de me cuidar e ainda cheguei a conhecer o Sr. Nogueira.
Estive quase trinta anos sem lá pôr os pés.
Não sabendo que ia fechar, um dia antes do fim, retornei àqueles bancos de napa castanha. Claro que notei (notava sempre que passava à porta) que aquilo estava deserto e já só tinha um empregado. Das antigas enchentes de homens a «fazer-barbas» e «cortes-rápidos», já nada se notava.
Nunca julguei regressar àquele «salão». A falta de dinheiro e a incapacidade de ir mais longe, fez-me ir nesse dia. Lá estava o Sr. Rodrigues, ali empregado desde os 14 anos e feito dono com a debandada geral dos colegas depois da morte do fundador.
Encantador como nos tempos áureos da barbearia, cumprimentou-me sem me reconhecer e ali estivemos, conversando e brincando como se tudo pudesse ser risonho no futuro.
No dia seguinte, na pastelaria, comentava-se o encerramento compulsivo da loja e a penhora das finanças que até calicidas fora de prazo reteve.
A barbearia Nogueira é agora um buraco de paredes nuas e do Sr. Rodrigues não há novidade.
Extraordinariamente, todas as noites, alguém continua a entrar no «salão» e a acender as luzes do grande letreiro que encima a porta.
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domingo, 15 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George



#31

Iam mostrando pelas ruas de Sevilha como eram um casal prodigioso. Conversavam em voz gritada. Vestiam capa de turista e junto ao grande teatro e demoravam-se em beijos longos, ardentes, espampanantes. Claro que só metade do espetáculo era amor exacto, a outra metade era arte límpida. Viviam a movida sevilhana em permanente actuação. A fórmula perfeita: amavam-se e do amor faziam esculturas vivas de brutalidade física.
Lorca, consumou-se fuzilado numa praça de touros. Até no seu momento final ele esteve do lado certo, o do touro.
Dali, morreu antes de ser cadáver. Abandonou a alma e ficou só corpo no dia em que renunciou a Federico. Dali, toureiro.
Para felicidade de ambos, não se devem voltar a cruzar. A eternidade não seria tão cruel.
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sábado, 14 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George


# 30

Costumava perguntar-me porque serias tão reluzente, com uma aptidão tão apurada para a observação justa das questões mais íntimas dos outros. Conseguias ganhar a fé perfeita de qualquer um. Primeiro em conversas que se iniciavam banais e que depois conquistavas para os terrenos mais difíceis de partilhar. Isso acontecia amiúde, mesmo com desconhecidos em encontros sociais... trabalho... Qualquer cenário te dava terreno para chegares perto da intimidade alheia.
O truque, se havia truque, talvez estivesse no facto de entabulares os diálogos lançando, de surpresa, uma revelação privada dos teus dias com tamanho despudor que instantaneamente despertava a sensação de seres alguém sem nada a esconder a quem se podia replicar fosse o que fosse de igualmente privativo sem qualquer constrangimento. Digo isto do “truque”, pois passada essa primeira confidência de acostagem ao território do “outro”,  não voltavas a expor algo teu. Também em relação a isto, as figuras que escolhias (e tu escolhias...), por instinto, assumiam que por humildade calavas sobre ti tornando-te totalmente dedicado a ouvir.
Hoje ao ler num dicionário a definição de mago, foi como no significado bastasse constar o teu nome: Siddhartha.
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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#29

O odor do templo tinha mudado. Sentei-me e fitei os vitrais pacificamente.
Entretanto entrou um casal que sussurrava e às escondidas tentava fotografar pinturas. Depois vieram umas irmãs devotas rezando o terço tão alto que o Unigénito, lá, à direita do Pai, com certeza as ouviria pelo ouvido humano. Passados uns minutos, mais de centenas de japoneses entravam descaradamente fotografando tudo.
Deixei de ver os vitrais, extinguiu-se qualquer espasmo pacífico do meu coração e senti que tinha o direito de ostentar insígnias de superioridade, gritar e maldizer aquela turba... talvez nem todos. O casal envergonhado tinha-me deixado uma certa ternura nos lábios. É assim que nos massacres se escolhem as vítimas: juízos de pequenas impressões.
©

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Cartaz

c Frederico Mira George
(Crucificação II)


#28

Caminhou lentamente em direção ao café. De manhã tudo parecia ficar longe. Aquele carreiro habitual parecia ilimitado e o Sol feria-lhe os olhos.
J ouviu o som do ruir dos seus pensamentos. Ter-se-ia Babel instalado? Ao tentar exprimir-se cada fala levava a um equivoco e esse era agora o seu maior terror.
Dilatou ainda mais os passos: «Se este caminho for muito longo, tenho tempo para esclarecer as palavras mal julgadas...»... repetia para si como um mantra.
Na verdade, J precisava de tempo para arrostar as hidras que a vida lhe trazia. Os dragões que lhe assomavam à estrada não eram diferentes nem mais ofensivos que os de toda a gente, ele é que se sentia inábil e exaurido.
O Sol mantinha-se frontal. J paralisou por uns momentos. Na rua tudo parecia perpendicular.
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terça-feira, 10 de maio de 2011

Nas Eleições....

Frederico Mira George

Cartaz

©Frederico Mira George


#27

O velório foi uma festa linda! O caixão mal se notava. O senhor Q “vestiu” um chapéu especialmente desenhado para a ocasião. Enfim, todos quiseram estar presentes. Bem vestidos. Bem falantes. Bem bebidos.
Saídos da capela, alguns convidados seguiram para um clube nos arredores, junto ao mar, e continuaram a celebração.
De madrugada, já sozinho na capela, L aproveitou para gritar. Claro que os gritos dos defuntos não se ouvem. Mas antes que pusessem a tampa do esquife, L expulsou nos seus brados o imenso alívio de ter deixado os seus amigos.
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