«O Peixe de Herberto»©FMG

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cartazes, Diário Literário - Parte II - «A Narrativa»: #41

© Frederico Mira George

#41

De um dia para o outro éramos todos pintores. E escrevíamos. Pensávamos em conjunto e regressávamos à rua depois um longo deserto de travessia. A filosofia era o nosso corpo e Lisboa cenário para os olhos. Era tudo possível e espantoso em nós. Portugal voltava a ser cinzento depois do espasmo libertário de Abril e cabia-nos a nós, um de cada vez, retornar à cor da festa militante.
A partir desta linha estamos em Lisboa, nas ruas e nas casas dos anos oitenta de um século irremediavelmente passado.
(...)
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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George

#40

Não contava com a plenitude depois de tanto clamar. Pensei que não me ouvissem. Pensei que que tinha chegado o fim.
Talvez julguem que estou a dramatizar, que é uma rábula de mim mesmo. Não, não é.
As borboletas que invadiam o meu quarto à noite desapareceram há umas semanas. Hoje, desviando as voltas a tudo o que me é tormento, as borboletas-traça chegaram de manhã. Lúcidas e com voos próprios de borboleta. Visitaram e quarto e saíram. Ou se despediam, ou anunciavam algo.
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domingo, 22 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George
®F.M.G./DC/Com
#38

No dia seguinte veio ver-me e trazia um saco com revistas alemãs. Eram preciosas.
Nos anos 80, em Lisboa, começavam a brotar pequenos movimentos de artistas: pintores, escultores, poetas, o famoso «regresso à pintura» com a exposição Homeostética na Sociedade Nacional de Belas-Artes e o nascimento de minúsculas galerias que haviam de se tornar desmedidas: «Cómicos», «Módulo», «Quadrum», «Diferença»... Geração-Perdida, como a baptizaram. E em pano de fundo profanava-se o rock cantando em português com ritmos exagerados, próprios de quem esteve demasiado tempo calado.
Saber como pintavam os alemães era água para quem está à seca. E ele sabia o tanto que eu ansiava daquela Berlim Oriental. Paris deixara de ser o centro do mundo, Nova-Iorque começava sair das Sombras e Nevoeiro*. Lisboa sentia-se perdida como é seu rosário.
Ficámos a passear entre pinturas de Baselitz, fotografias de Wenders... Não voltámos às feridas da conversa anterior. O afecto morria ali.
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*Shadows and Fog, filme de Woody Allen

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George
(Yin-Yang, para João Carlos Silva)


#36

Em França achei que poderia invadir a inteligência de mim mesmo e abater as paredes entre o que vejo no espelho e os meândricos desenhos: a amálgama de evocações, apetências, bem-e-mal-querenças, que me povoam o cérebro.
A filosofia religiosa parecia a entrada para um cosmo enigmático e bondoso da mente, quis conhecê-lo. Estudei sob orientação de dois místicos tibetanos e de um cristão pragmático que esquecera o  teologismo habitual para empreender esforços teológicos sinceros.
França era uma espécie de olimpo para quem com a minha idade encontrava duvidas e repostas no odor das cidades de manhã, no sabor dos alimentos, nas sensações da pele.
Bastaria ter abraçado uma religião com o fulgor inicial da juventude. Sem trespassar fronteiras geográficas, sem voar com asas-de-cera tão perto do Sol.
Místicos tibetanos têm a sua graça. Cristãos pragmáticos ainda mais. Mas o caminho deles nunca se cruzou com o meu. Em França habitei o chão da esperança e nunca o da liberdade. Mestres e eu... caminhos paralelos... só por ironia... no infinito.
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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George


#35

Andava às voltas na praceta procurando alguém que o reconhecesse.
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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#34

Enquanto fumava um último cigarro – ritual diário de treino para o sono –,  Ocorreu-lhe que apesar de toda a dileção e oblações amorosas, ser-lhe interdito partilhar os «territórios» encobertos da mente de O (ou mesmo as recordações que ele sabia subliminares em alguns dos olhares dela), dava origem a um estremecer quotidiano que o fazia receoso e timorato.
Já apagado o cigarro, enquanto desfruía do silêncio que sempre precedia os estrépitos maldosos do sono, arrependeu-se destes pensamentos. Afinal, se lhe fossem abertas as portas desses «terrenos» o seu temor seria muito maior. Jamais saberia lidar com o universo reservado de O. Principalmente porque até talvez nem existisse, ou pior, existindo, fosse um espelho rigoroso do seu.
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terça-feira, 17 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#33

A janela era a moldura. Durante a trovoada o céu trouxe todo o firmamento para um só plano. As cores eram tão oleosas e espatuladas, com matéria palpável, que se diria ter estado a percorrer uma passagem de telas de coloração semelhante às da polaroide.
A trovoada de ontem, vista em estampas com o ornato da janela da estufa, conferiu-me a certeza de que tudo o que apeteço criar já existe e está no páramo do Olimpo.
No terror a que esta constatação me sujeitou, encarei a cama e fui tentado a uma promessa: «Aqui ficarei, fixo, encarnando religiosamente cada ilustração telúrica e fixando-as uma-a-uma, rubricarei nelas o nome que me deres».
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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Cartazes - Diário Literário /sobre Cartaz #32

©Frederico Mira George
© Frederico Mira George

Cartaz

©Frederico Mira George


#32

A barbearia Nogueira fica na esquina da rua onde estou hospedado. Fechou de vez esta semana. Tinha aberto ao público há sessenta e um anos.
Em criança ia lá cortar o cabelo pela mão de uma criada que tinha o serviço de me cuidar e ainda cheguei a conhecer o Sr. Nogueira.
Estive quase trinta anos sem lá pôr os pés.
Não sabendo que ia fechar, um dia antes do fim, retornei àqueles bancos de napa castanha. Claro que notei (notava sempre que passava à porta) que aquilo estava deserto e já só tinha um empregado. Das antigas enchentes de homens a «fazer-barbas» e «cortes-rápidos», já nada se notava.
Nunca julguei regressar àquele «salão». A falta de dinheiro e a incapacidade de ir mais longe, fez-me ir nesse dia. Lá estava o Sr. Rodrigues, ali empregado desde os 14 anos e feito dono com a debandada geral dos colegas depois da morte do fundador.
Encantador como nos tempos áureos da barbearia, cumprimentou-me sem me reconhecer e ali estivemos, conversando e brincando como se tudo pudesse ser risonho no futuro.
No dia seguinte, na pastelaria, comentava-se o encerramento compulsivo da loja e a penhora das finanças que até calicidas fora de prazo reteve.
A barbearia Nogueira é agora um buraco de paredes nuas e do Sr. Rodrigues não há novidade.
Extraordinariamente, todas as noites, alguém continua a entrar no «salão» e a acender as luzes do grande letreiro que encima a porta.
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domingo, 15 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George



#31

Iam mostrando pelas ruas de Sevilha como eram um casal prodigioso. Conversavam em voz gritada. Vestiam capa de turista e junto ao grande teatro e demoravam-se em beijos longos, ardentes, espampanantes. Claro que só metade do espetáculo era amor exacto, a outra metade era arte límpida. Viviam a movida sevilhana em permanente actuação. A fórmula perfeita: amavam-se e do amor faziam esculturas vivas de brutalidade física.
Lorca, consumou-se fuzilado numa praça de touros. Até no seu momento final ele esteve do lado certo, o do touro.
Dali, morreu antes de ser cadáver. Abandonou a alma e ficou só corpo no dia em que renunciou a Federico. Dali, toureiro.
Para felicidade de ambos, não se devem voltar a cruzar. A eternidade não seria tão cruel.
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sábado, 14 de maio de 2011

Cartaz

© Frederico Mira George


# 30

Costumava perguntar-me porque serias tão reluzente, com uma aptidão tão apurada para a observação justa das questões mais íntimas dos outros. Conseguias ganhar a fé perfeita de qualquer um. Primeiro em conversas que se iniciavam banais e que depois conquistavas para os terrenos mais difíceis de partilhar. Isso acontecia amiúde, mesmo com desconhecidos em encontros sociais... trabalho... Qualquer cenário te dava terreno para chegares perto da intimidade alheia.
O truque, se havia truque, talvez estivesse no facto de entabulares os diálogos lançando, de surpresa, uma revelação privada dos teus dias com tamanho despudor que instantaneamente despertava a sensação de seres alguém sem nada a esconder a quem se podia replicar fosse o que fosse de igualmente privativo sem qualquer constrangimento. Digo isto do “truque”, pois passada essa primeira confidência de acostagem ao território do “outro”,  não voltavas a expor algo teu. Também em relação a isto, as figuras que escolhias (e tu escolhias...), por instinto, assumiam que por humildade calavas sobre ti tornando-te totalmente dedicado a ouvir.
Hoje ao ler num dicionário a definição de mago, foi como no significado bastasse constar o teu nome: Siddhartha.
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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#29

O odor do templo tinha mudado. Sentei-me e fitei os vitrais pacificamente.
Entretanto entrou um casal que sussurrava e às escondidas tentava fotografar pinturas. Depois vieram umas irmãs devotas rezando o terço tão alto que o Unigénito, lá, à direita do Pai, com certeza as ouviria pelo ouvido humano. Passados uns minutos, mais de centenas de japoneses entravam descaradamente fotografando tudo.
Deixei de ver os vitrais, extinguiu-se qualquer espasmo pacífico do meu coração e senti que tinha o direito de ostentar insígnias de superioridade, gritar e maldizer aquela turba... talvez nem todos. O casal envergonhado tinha-me deixado uma certa ternura nos lábios. É assim que nos massacres se escolhem as vítimas: juízos de pequenas impressões.
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quarta-feira, 11 de maio de 2011

Cartaz

c Frederico Mira George
(Crucificação II)


#28

Caminhou lentamente em direção ao café. De manhã tudo parecia ficar longe. Aquele carreiro habitual parecia ilimitado e o Sol feria-lhe os olhos.
J ouviu o som do ruir dos seus pensamentos. Ter-se-ia Babel instalado? Ao tentar exprimir-se cada fala levava a um equivoco e esse era agora o seu maior terror.
Dilatou ainda mais os passos: «Se este caminho for muito longo, tenho tempo para esclarecer as palavras mal julgadas...»... repetia para si como um mantra.
Na verdade, J precisava de tempo para arrostar as hidras que a vida lhe trazia. Os dragões que lhe assomavam à estrada não eram diferentes nem mais ofensivos que os de toda a gente, ele é que se sentia inábil e exaurido.
O Sol mantinha-se frontal. J paralisou por uns momentos. Na rua tudo parecia perpendicular.
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terça-feira, 10 de maio de 2011

Nas Eleições....

Frederico Mira George

Cartaz

©Frederico Mira George


#27

O velório foi uma festa linda! O caixão mal se notava. O senhor Q “vestiu” um chapéu especialmente desenhado para a ocasião. Enfim, todos quiseram estar presentes. Bem vestidos. Bem falantes. Bem bebidos.
Saídos da capela, alguns convidados seguiram para um clube nos arredores, junto ao mar, e continuaram a celebração.
De madrugada, já sozinho na capela, L aproveitou para gritar. Claro que os gritos dos defuntos não se ouvem. Mas antes que pusessem a tampa do esquife, L expulsou nos seus brados o imenso alívio de ter deixado os seus amigos.
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segunda-feira, 9 de maio de 2011

5 de Junho

Frederico Mira George
Frederico Mira George

Galeria de VOLTE-FACE #3

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Cartaz

©Frederico Mira George (Crucificação)

#26

Ontem, as golfadas de chuva, puras como um teorema. Hoje, Deus a duplicar anjos em forma de borboletas-traça, exército de mártires.
Não, não sou eu que vejo as coisas de forma obscura. São os eventos que chocam contra a minha pele, um atrás do outro, sem piedade, sem retrocesso.
Dizem-me que os sábios inventaram a coerência e convicção. Dizem tantas coisas dos sábios... Os sábios não falam! Nem uma sentença lhes é extorquida em períodos de apocalipse ou grosseiro desamor.
Há uma profecia de morte espalhada em nome dos sábios. Tontos os inocentes, tontos os alquimistas, tontos os magos e os escritores.
Anseio o efeito suave da morfina e protejo os olhos do Sol.
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domingo, 8 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#25

Olhei para a capa do romance, chamava-se «Noites de Tédio em Argel». Nem o folheei. Conhecia o autor de vista, um homem dos seus cinquenta anos, cabelo aloirado com uns traços de prata.
Tinha lido um dos seus livros e ficara perturbado com a forma que ele usava para inscrever as personagens à beira do fim. Parecia frio, quando na realidade ensinava uma compaixão extrema, quase jesuíta.
Neste momento não tenho capacidade para ler coisas assim. Sei que ficaria prostrado, atemorizado, sem apoio. Tenho o juízo tão frágil.
Não obstante, adormeci com o livro fixo a mim. Talvez confiasse que os caracteres tomassem os meus sonhos...
De manhã não sentia nada e o livro estava caído ao lado da cama.
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sábado, 7 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George



#24

«Suponho que se quisermos incorporar os escritos da nossa história devemos fixar o passado como se fosse a vida de outro ser.»
A filosofia tem crueldades destas. Ninguém cobiça incorporar os escritos da sua crónica. Ou há gente assim? Não percebo...
«Fixar o passado como se fosse a vida de outro ser»[?], mas nós não sabemos nenhuma vida que não a nossa. É crueldade pura pôr as coisas assim. Seguir estes passos, fixar o passado como se nosso não fosse e projetar cada evento num hipotético ser alheio, é deixar-nos sem veias, sem células mortas, sem traços do que sucedemos.
Segui andando e tentei evitar o pensamento. A filosofia faz-me mal. No entanto, habito no seu estômago, o lugar impuro onde tudo o que somos é digerido como esclarecimento estatístico.
O assomo não me abandonou à medida que caminhava. Ainda assim consegui fazer uns desenhos no caderno, utilizando um parte esconsa do cérebro para aproveitar o Sol.
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sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#23

Tornou-se um bizarro ritual nocturno. No princípio da madrugada, dezenas de borboletas atraídas pela luz do quarto, disparam em voos contra as paredes, sobre mim, a cama...
Com todos os instrumentos de morte que improviso, executo-as uma a uma. Todas têm uma morte lenta e agonizante que pressentem e contra a qual lutam desesperadamente.
Se as visse num jardim botânico ao meio do dia, enquanto contemplava flores ou pequenas árvores em rebento, achá-las-ia belas e transparentes de cores enternecidas de tons de ocre e negro. Aqui, neste quarto, à noite, resta-me o homicídio.
Esta noite compreendi que até os carrascos tem cansaço e precisam de repouso. Fechei as luzes e no quase-escuro, sentindo-as esvoaçar e bater contra os vidros e o tecto, fingi que as não ouvia. Protegi a cabeça com mantas e deixei-as. Passado uns minutos pareciam ter acalmado. Pensei que não voltaria a ter de matar diariamente.
Já esta manhã, despertei acidentalmente no abrir-do-sol e vi-as tentando encaixar os corpos em fissuras das paredes.
Sei que me esperam. Sei que as terei de confrontar. É um cenário dantesco, um quarto mínimo, invadido por dezenas de borboletas ansiosas para depositar os seus ovos entre as páginas dos livros, nas roupas, na comida que resta em pratos esquecidos... O homicídio voltará.
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quinta-feira, 5 de maio de 2011

Cartaz

©Frederico Mira George


#22

As cores do rosto tinham mudado muito. Já não tinha aquele rosado saudável dos anos vivos da juventude e começavam a notar-se gestos de cansaço junto aos olhos e nos cantos da boca.
Não se podia dizer que tivesse envelhecido. Era o mesmo. Era ele à primeira vista. Cruzámo-nos num breve instante e o olhar de reconhecimento foi reciproco. Mas ele preferiu andar e não se prender numa conversa comigo. Da minha parte teria sido breve, mas se ele assim o preferiu.
Guardei a gravação do colorido da sua face e pensei que se tivéssemos conversado já nem recordaria o encontro. Foi muito melhor assim.
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